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Comunidade: onde o “eu” encontra o “nós”

Grupos de corrida, clubes de leitura, pedaladas coletivas, rodas de conversa: pertencimento como ingrediente essencial do bem-estar.

Clubes de corrida podem até estar em alta nos dias de hoje, vistos como algo completamente inovador e amplificador de debates. Mas vou te contar um segredo: eles existem há anos.

A pergunta que fica é: por que agora eles se tornaram o hype? E o que, de fato, isso nos diz sobre a dinâmica socio-biológica humana?

A origem do conceito de clube tem raízes na Antiguidade, quando grupos sociais e políticos se reuniam para debater ideias e compartilhar momentos de lazer. Na Idade Média, surgiram clubes de cavalaria e estudos voltados à defesa de valores e ao aprimoramento intelectual.

Com a Revolução Industrial, os clubes ganharam estrutura organizada, promovendo lazer, negócios e integração social. No Brasil, apareceram no século XIX, ligados a movimentos políticos e sociais, atuando como espaços de debate e resistência. Assim, os clubes evoluíram de encontros informais para associações estruturadas, refletindo o contexto histórico e cultural de cada época.

Os clubes permearam o desenvolvimento humano, e junto deles vieram os estudos sobre comunidade e pertencimento. Esses temas ganharam força nos últimos anos. Isso também se deve à pandemia – responsável por potencializar tais debates após um período de enclausuramento, ócio e autoquestionamento – que teve como resposta algo simples: quebrar o superego humano e nos aproximar dos nossos instintos. Sim, somos um pouco animais, lembram disso?

O instinto de coletividade, existência, sobrevivência, natureza – tudo veio à tona. O fato é que temos uma necessidade biológica de viver em conjunto, muitas vezes velada pelo individualismo coexistente em um mundo onde a propriedade privada perpassa o âmbito jurídico, político e social.

O ser humano descobriu que viver em comunidade era algo benéfico para a evolução da própria espécie: segurança, divisão de tarefas, compartilhamento de conhecimento. Ou seja, desperta o sentimento de que “temos com quem contar”, principalmente diante das adversidades. Isso reforça a autoconfiança, encorajamento social e sensação de bem-estar.

O livro Sapiens: Uma Breve História da Humanidade, escrito por Yuval Noah Harari, historiador, filósofo e professor israelense, aponta para a sociedade como algo não só inerente à espécie humana, mas crucial para o nosso desenvolvimento cognitivo e cultural. Somos seres sociáveis, e isso permite que criemos um imaginário coletivo forte, transmissão de comportamentos geracionais e até mesmo de “fofocas” (essas que conhecemos bem).

Comunidade, nesse contexto, é só um “rebranding” contemporâneo e uma ênfase em algo que já existe há séculos. A palavra “comunidade” vem do latim communitas, formada por duas partes: com → “junto, em comum”; munus → “encargo, dever, dádiva, serviço”.

Ou seja, um grupo de pessoas unidas por um dever ou dádiva compartilhada, algo que se faz junto, por vínculo ou propósito. Comunidade é o antagônico de isolamento (curioso o termo ganhar força após a pandemia?), nasce da interdependência, de não apenas viver perto, mas de compartilhar responsabilidades e valores.

Entenda que, nesse caso, vai além de apenas caminhar junto: é “fazer parte”, agir ou pensar de uma forma socialmente aceita naquele determinado grupo. Repare: as comunidades hoje em dia – clubes de leitura, grupos de corrida, pedaladas e rodas de conversa – sempre te impulsionam a evoluir: mentalmente, fisicamente, socialmente.

Harvard já coloca a importância das relações interpessoais. O estudo Study of Adult Development, considerado o artigo científico mais longo do mundo sobre felicidade e saúde humana, demonstra que o fator que mais influencia a felicidade e a saúde ao longo da vida não é dinheiro, sucesso profissional nem fama, mas a qualidade dos relacionamentos.

Pessoas com laços sociais fortes e saudáveis (amizades, parceiros, família, comunidade) tendem a viver mais tempo, ter menos doenças crônicas e apresentar níveis mais altos de satisfação e propósito – compreende-se que bem-estar está longe de ser alguém sozinho e excluído do mundo.

Comunidades, nessa lógica, curam. Isso porque tais núcleos são capazes de gerar um bem-estar físico e mental, além de dar norte, direcionamento e sentido alinhado ao pertencimento. No livro Tribes, o autor Seth Godin, especialista em negócios, discorre sobre como as comunidades, ou “tribos”, como ele mesmo se refere ao termo, beneficiam, por exemplo, o marketing das instituições.

Nesse contexto, precisamos nos lembrar de que toda empresa oferece algum produto ou serviço a pessoas com interesses em comum, o que se encaixa perfeitamente ao conceito de comunidade. Somos seres naturalmente sociais, de modo que a coletividade, por mais complexa que seja, pode nos beneficiar consideravelmente. Vamos um pouco mais longe. Já vimos a importância das comunidades, mas por que me unir a um clube de corrida, por exemplo?

O que, de fato, isso proporciona?

A solidão está em alta. Um estudo de 2021 publicado no Psychological Bulletin identificou um aumento constante e linear na solidão entre jovens adultos ao longo do tempo. Os grupos de corrida seriam uma pílula contra a solidão contemporânea, permeada pelo excesso do uso da internet, que nos dá uma falsa sensação de proximidade quando estamos cada vez mais distantes. Imagine um poço onde a profundidade é tamanha a ponto de você não conseguir dimensionar onde, de fato, é o fim. Nossa relação e os vínculos criados no virtual tornam a sensação de conectividade e proximidade nebulosa e confusa.

Os grupos de corrida vêm para clarear o fundo desse poço. Tangibilizar os vínculos e reforçar uma socialização genuína, leve, espontânea e íntima. O exercício, por si só, eleva nossa sensação de bem-estar físico e mental, auxiliando nossa percepção positiva de valor. Eu digo que, quando consigo cumprir o compromisso de me exercitar, mudo até o espectro de cor que enxergo no dia a dia.

Com os vínculos não é diferente: a soma do esporte com os neurotransmissores do bem-estar facilita, estimula e impulsiona a socialização real, espontânea e genuína. Você não precisa necessariamente do álcool para reduzir a ansiedade social, apenas de um par de tênis e uma dose de motivação. A ausência de pressão em performar abre espaço para um ambiente confortável e descontraído.

E o pertencimento? Onde entra nessa história?

O pertencimento é um sentimento ativado pela comunidade. Segundo a psicóloga Miriam Debieux Rosa, professora titular do Instituto de Psicologia da USP e coordenadora do Laboratório de Psicanálise, Sociedade e Política da USP:

“Pertencimento é aquela percepção de alguém fazer parte de uma comunidade, de uma família, de um grupo, de uma nação. Ele está muito ligado ao reconhecimento e a como um cidadão tem respeitada a sua dignidade, a sua cultura e as suas diferenças.”

Nesse sentido, não é sobre estar em uma comunidade, mas se sentir reconhecido, valorizado e ouvido. O tal do “ser e estar”. Ou seja, sabe aquela visão de popularidade – “estar rodeado de pessoas”? Já te digo de antemão que você pode estar circundado de pessoas e, mesmo assim, não se sentir pertencente.
Isso porque pertencer tem a ver com se sentir acolhido e entendido.

“A característica humana justamente está nessa necessidade absoluta de viver […] vinculado ao outro. Essa experiência fundamental do bebê humano, que só sobrevive porque alguém se encarregou de cuidar dele, de dar amor e suprir suas necessidades. Então, essas experiências são fundantes do sentido da vida […]. Mesmo o adulto tem essa necessidade de reconhecimento e de ser acolhido para exercer qualquer atividade.”

O sentimento de pertencimento também auxilia na prevenção de problemas de saúde mental como a depressão, a ansiedade, pensamentos suicidas e o sentimento de estar sozinho. Estar privado do sentimento de pertencimento desencadeia, nesse caso, problemas de saúde e piora as relações sociais, de comunicação e de convívio.

Portanto, não estamos falando de um conceito passageiro, banal e que logo estará em desuso, mas de uma condição existencial humana. Um tema que faz parte da nossa biologia e até mesmo do entendimento social e comportamental.

“Ser e estar” é se sentir parte intencional, conectada e vital. Comunidade é um estado de volta à nossa natureza instintiva. É o entendimento de que necessitamos uns dos outros. É o resgate do nosso senso de humanidade. É ouvir e ser ouvido com a certeza de que a conexão não só faz sentido, como gera.

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